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ENSAIO 04: SORVETE DE MELÃO

Foto do escritor: LFMontagLFMontag

Atualizado: 15 de out. de 2023



Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.



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28/03/2022


SORVETE DE MELÃO


Anéis de cocô, o melhor sorvete do mundo e o dia em que eu mesmo quase comecei uma guerra contra a Coreia do Sul mas terminamos dando boas lisadas.


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O biólogo Stephen Jay Gould tem uma frase que eu considero definitiva a respeito da natureza:


- Deve-se olhar para a natureza como ela é de fato, indiferente aos julgamentos morais da espécie humana e em iguais proporções de choque e admiração.


Em uma das passagens de um de seus livros ele narra uma situação onde esta frase se encaixa perfeitamente, uma ave de uma determinada espécie em uma ilha a qual não lembro o nome e o seu anel de guano.


Muitas espécies de aves de regiões litorâneas e marítimas costumam fazer o ninho no solo basicamente como demarcação territorial, um círculo de fezes que após ressecado adquire cor esbranquiçada conhecido como anel de guano e dentro deste círculo entram somente a fêmea da espécie, seus ovos e então, os seus filhotes.



Em períodos de escassez alimentar ou até mesmo quando um dos filhotes se mostra mais dependente e incapaz algo muito estranho (e triste) acontece, a mãe se retira de dentro do anel assumindo a postura de espectadora silenciosa e os filhotes automaticamente passam a brigar entre si com o vencedor expulsando o derrotado para fora da linha, quando a mãe então volta para o ninho e o filhote expulso passa as últimas horas da sua vida ferido e jogado à própria sorte, sem proteção ou algum tipo de defesa da sua mãe ou irmão, gritando até perder a voz e as forças e morrer de inanição e/ou ser comido por outro animal no mesmo ambiente.


Em alguns casos após a sua morte pode ocorrer também canibalismo por parte do irmão e da mãe.


A lei natural nesta situação é tão simples quanto amarga: Na escassez sobrevive quem tem mais condições de lutar. Tendo condições de alimentar e cuidar de apenas um filhote cabe à mãe criar um ambiente onde ambos tenham a mesma oportunidade de brigar pela vida.



O próprio anel de guano não só é um ocasional centro de rinha mas ocasionalmente ele mesmo já se tornou o centro de disputas e até guerras entre seres de outra espécie, a humana, como bem mostra a Guerra do Pacífico.


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No Século XVIII Thomas Malthus formulou em seu "Ensaio Sobre o Princípio da População" a teoria de que a produção de alimentos não aumentaria na mesma proporção da população, levando sempre a uma série de problemas no fornecimento de produtos e serviços básicos causando inevitavelmente fome.


Esta mesma teoria influenciou todo o trabalho de Charles Darwin na medida em que ele observava o mesmo acontecendo em diversas populações de animais ao redor do mundo e um século depois se provou na nossa espécie com o esgotamento e a erosão dos campos agrícolas da Europa após décadas de exploração e em episódios como "A Grande Fome da Irlanda" mas, para a sorte dos europeus, a segunda onda das grandes navegações para a América do Sul descobriu as maravilhas do salitre e do guano, o cocô das aves, logo apelidado de ouro branco.


Fertilizante natural rico em nitrogênio, amoníaco, ácido úrico, ácido fosfórico, ácido oxálico, ácido carbônico, potássio e outros sais minerais e na costa do Peru navegadores espanhóis descobriram regiões onde o sedimento de guano alcançava torres de até 45 metros de altura, fezes depositadas por milhões de aves ao longo de milhares de anos, bem como depósitos de toneladas de salitre, ou nitrato de sódio, principalmente nas costas desertas do Chile e cuja conversão em nitrato de potássio tem usos diversos que vão desde a conservação de alimentos enlatados e também fertilizantes, aumentar a resistência do ouro em joias e para fazer pólvora.



Com a crescente cobiça dos navegadores e comerciantes europeus a Guerra do Pacífico se deu entre 1879 e 1883 durante a expansão territorial do Chile e a consequente invasão e exploração de terras do Peru e Bolívia, que perdeu a saída para o mar além das suas reservas de nitrato e cobre, tornando a costa chilena a principal exploradora e exportadora de guano e salitre até o fim da Primeira Guerra Mundial em 1918, quando houve a introdução do salitre sintético no mercado mundial criado pelos químicos Fritz Haber e Carl Bosch, produzindo fertilizantes industriais em larga escala e substituindo o guano e o salitre naturais.


Embora Thomas Malthus pareça ter ignorado a engenhosidade humana e a capacidade inata da nossa espécie em resolver e superar problemas dois fatos aparentemente antagônicos sobre a fome parecem coexistir: Tecnicamente existem recursos e capacidade para alimentar cada pessoa neste planeta e a ocorrência ou não da fome depende cada vez mais de decisões políticas, a produção de alimentos por um lado é refém de poucos países capazes de produzir grãos para atender uma demanda global que por si são reféns de outros poucos países com igual capacidade de atender a demanda de fertilizantes artificiais para garantir a produção anterior, então o princípio de Malthus talvez não seja um postulado determinista mas um fato a se repetir de tempos em tempos, em cada período por um motivo diferente levando sempre ao mesmo resultado.


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Algumas décadas antes da Guerra do Pacífico e da dominância do Chile no mercado de guano e salitre o Bairro Liberdade em São Paulo ainda era conhecido no Brasil pelo nome Bairro da Pólvora por abrigar a Casa da Pólvora na região conhecida como Largo da Pólvora, ao lado da praça de nome Largo da Forca, onde ocorriam execuções públicas e onde também foi instalado o primeiro cemitério público da Cidade de São Paulo, criado para abrigar corpos de indigentes e enforcados.


Definitivamente não parece ter sido um bom lugar para se visitar.


Quando o imperador Don Pedro I abdicou o trono em 1831 o então conhecido Chafariz do Curso Jurídico foi nomeado como Fonte da Liberdade, nome que logo se estendeu por todo o bairro.


Originalmente ocupado por ex-escravos ao longo dos anos o Bairro Liberdade passou a abrigar portugueses e italianos e na virada para o Século XX imigrantes japoneses que ao longo das décadas seguintes redesenharam toda a região deixando culturalmente e visualmente como reconhecemos hoje, abrigando também outros imigrantes asiáticos como chineses e coreanos e é conhecido por suas feiras, comércios, datas comemorativas e cardápios únicos que todos os dias atraem paulistas e turistas para a região.


Apesar das origens e do desenvolvimento algo conturbado o Bairro Liberdade tem um histórico pacífico e baixos índices de criminalidade, a não ser por um episódio muito pouco falado quando um turista paranaense quase iniciou uma guerra contra a Coreia do Sul.


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Em 2000 já faziam três anos que eu costumava ir com frequência para São Paulo sem conhecer São Paulo. Chegava na cidade, ia para algum hotel ou para a casa do Gustavo e de lá para algum show, ou festival ou clube da cidade.


Dois ou três dias depois voltava para casa e muitas vezes mal ficava 24 horas, sempre em função apenas de ver algum artista ou DJ. Mas na virada do milênio o Gustavo teve um surto de guia turístico, resolveu me chutar da cama e me levar para conhecer o Bairro Liberdade.


Afirmando com certa maldade o bairro na prática não é nada muito além de um camelódromo nipônico a céu aberto, com milhares de coisinhas para vender que desconheço a utilidade no meio de eletrônicos de marcas ignoradas, pomadas de mentol aqui e incenso lá, missôs e sushis, pastel, caldo de cana e... Melona.



Existe um gene identificado somente em genoma de paranaenses, ativado na primeira infância e depois nunca mais desligado: o famoso gene viciado em sorvetes de marcas desconhecidas.


Carrinho de picolé pra cá, banca de picolé pra lá, sorvete de suco de não sei o quê, sorvete de nata e milho verde. Quanto mais açucarado, grudento, mal embalado e sem graça melhor fica.


Mas Melona era inédito.

E bem embalado.


Quando bati o olho o Gustavo se adiantou:


- Nem prova esta merda se não você vai viciar.


Não ouvi, peguei um do refrigerador, virei para a menina do caixa e perguntei:


- Quanto?


Antes mesmo de eu terminar a pergunta ela já havia respondido:


- Telêis e cinquenta.


Engasguei o riso, perguntei de novo e ela respondeu, um pouco irritada:


- Te... lêis. E cinquenta.



Paguei, peguei o tloco e então plovei o sorvete.


Meu.

Deus.

Do.

Céu.


Indescritível, chamaria facilmente este sabor de Melão Blowing, um sorvete coreano de melão no formato de um porrete e cor de vômito do demônio do exorcista, nada pode ser melhor.


Mal terminei e voltei na mesma loja, peguei mais um e já perguntei rindo:


- Quanto?


E a menina, interrompendo rapidamente do mesmo jeito:


- Telêis e cinquenta.


E eu:


- Hmm?


E ela, agora irritadíssima, num tom de voz duas vezes mais alto:


- TE... LÊIS... E... CINQUENTA.


Paguei, saí, comi e bom, voltei.


Mal apareci e o provavelmente pai da menina desta vez apareceu do lado.


Engoli o riso antecipadamente e perguntei do mesmo jeito:


- Quanto?


O pai dela se adiantou:


- Telêis e cinquenta.


Olhei para ela e ela então começou a rir.


Então eu repeti a pergunta:


- Telêis e cinquenta?


E ela:


- Sim.


Em menos de uma hora comi três, quero dizer, telêis.


Não sei se foi o aparente fim das tensões caipira do interior versus adolescente coreana ou se eu já estava viciado, mas o terceiro picolé de Melona parece ser o melhor.


De Melona em Melona já era quase meio-dia e decidimos almoçar pastel e Coca-Cola por ali mesmo e de sobremesa... picolé de Melona.


Voltei, a menina deu tchau rindo quando estava a menos de um metro dela.


Em respeito dei tchau rindo de volta, peguei mais um Melona e perguntei:


- Telêis e cinquenta?


E ela, concordando:


- Telêis e cinquenta.


Aí comi e voltei, porque apenas um Melona de sobremesa é muito pouco.


A menina sorriu, eu sorri, peguei mais um picolé e apenas afirmei:


- Telêis e cinquenta.


E ela:


- Telêis e cinquenta.


Enfim entramos em um acordo, afinal telêis e cinquenta é telêis e cinquenta em qualquer lugar deste planeta, independente de você achar glaça ou não.


Partindo do princípio que push não é puxar e pull não é empurrar seria o melão na Coleia chamado de merão e qualquer crise diplomática poderia ser resolvida com marcas desconhecidas de sorvete?


Creio que sim.


De tarde no mesmo dia ainda conheci o Parque do Ibirapuera mas como não existia Melona para vender em nenhum lugar achei tudo muito sem graça.


Ainda existe Melona nos sabores morango, banana, manga e coco, sendo que estes dois últimos ainda falta eu conhecer, a história da marca é pouco conhecida com apenas dois parágrafos no site da empresa onde a maior informação é o ano da sua criação, 1992, e em 1994 já ter sido recordista com mais de 280 milhões de picolés vendidos.


Será que um dia eles farão o picolé Melona Transparente? Pedirei um lote só para mim se isso acontecer.


No Brasil a fábrica fica em Mogi das Cruzes, perto da Capital e cidade natal do Gustavo e meu pensionato informal durante muitos anos, onde provavelmente também fica a clínica de recuperação de viciados em Melona.



Se encontrar para vender por aí fique longe, depois não diga que eu não avisei.


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Por falar em melão um dia uma amiga minha postou um story no Instagram perguntando como faz para saber quando um melão está maduro.


O story seguinte era ela perguntando como lidar com a festa barulhenta na casa do vizinho.


A minha sugestão foi bem simples: joga o melão no vizinho, se espatifar está maduro, e assim você resolve dois problemas ao mesmo tempo.


Ou inicia uma guerra por causa de um melão.


Uma semana depois ela fez um stories de biquíni na praia e eu respondi: melões maduros.

Ela riu e mandou um audio dizendo "seu idiota".


Mais tarde me mandou uma mensagem perguntando "o que eu estava fazendo" e eu respondi que estava me arrumando para sair com ela, saímos, transamos, foi maravilhosa, saímos mais vezes e ela ainda é minha amiga, fim.


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Mundo maravilhosamente estranho, aves fazem rinhas com os próprios filhos, países entram em guerra por causa de cocô de passarinho e coreanos produzem misteriosamente o melhor sorvete do mundo com sabor de melão, esta fruta maravilhosa, basicamente uma melancia que se recusa a sentir vergonha, com formato de bola de futebol americano e que depois de cortada se divide em duas bucetas. E quando maduro ajuda até em xavecos furados no timing certo, melão definitivamente é uma fruta legal.



A morte tem cheiro de maçã, a vida tem cheiro de limão e a liberdade para mim tem cor e sabor de sorvete de melão.



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O Bairro Liberdade se encontra exatamente no centro do mapa que separa as zonas oeste e leste da Cidade de São Paulo e a menos de dez quilômetros de Heliópolis, a maior favela da cidade, que comemorou 50 anos de existência em 2021.


Eu tenho uma ligação especial com as favelas das zonas sul e leste de São Paulo mas como o tema ainda é liberdade, seja ela física ou espiritual, precisamos primeiro falar sobre a relação da liberdade com a origem das favelas.


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Cápsula do tempo.


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Enfim acabou o verão, agora a vida começa e vai até dezembro.


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