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ENSAIO 21: TRÊS RUSSOS

Atualizado: 29 de dez. de 2023



Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.



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13/12/2022


TRÊS RUSSOS


Uma cachorrinha azarada, um osso duro de roer e aquele que todo mundo esqueceu de convidar para o velório.


Três exercícios, três histórias e três lições.


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Os cães e também nós humanos salivamos facilmente, instintivamente e de forma incondicionada na presença ou no cheiro de comida mas não necessariamente quando ouvimos uma campainha.


Nem mesmo quando o motoboy do Ifood toca a campainha.


Ivan Pavlov foi um neurologista e cientista experimental russo e soviético conhecido por sua descoberta do condicionamento clássico por meio de seus experimentos e entrou para a história da medicina e psicologia no início do século passado fazendo cães salivarem ao ouvir o toque de uma campainha com uma associação simples: cada vez que fosse oferecido comida para um cão a salivação dele era medida, depois passou a ser oferecido comida e no mesmo segundo uma campainha era tocada e então a salivação era medida novamente.


Após a repetição deste gesto duplo (comida mais som de campainha) N vezes bastava então um simples toque de campainha para estimular no cão a mesma quantidade de salivação mesmo sem ser oferecido nenhum pedaço de algo nenhum para comer.


Nascia assim o condicionamento clássico (ou condicionamento pavloviano ou condicionamento respondente), também chamado de behaviorismo, o ato de oferecer um estímulo neutro (no caso o som) para estimular uma resposta sensorial vinculada a um estímulo incondicionado (neste caso a comida) gerando uma resposta antes natural mas agora condicionada (salivação).


Não que os russos precisassem desta pesquisa, no mesmo período Josef Stalin já era Secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética e durante seus discursos foi adotada uma campainha que era tocada como sinal autorizando os seus espectadores pararem de salivar digo, aplaudir.


O motivo, segundo conta-se, era o medo generalizado da primeira pessoa que parasse de aplaudir ser presa ou assassinada.


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Esses dias um amigo me mandou um meme daqueles inteligentões e tive de pesquisar no Google para entender a piada, e de quebra descobri um gancho legal para falar e quebrar mais um bloqueio criativo causado pela toxicidade destes meses horrorosos tipicamente brasileiros fazendo de tudo para salvar o estado democrático de direito e conquistar a copa do mundo usando a mesma tática de sempre e ao mesmo tempo: batucando.


Então vamos continuar a falar de cu, o dos outros, e vamos falar de três experimentos e três russos e como eles nos ensinam sobre o exercício do poder.


Segue.


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Três simples experimentos aleatórios sobre lições nada aleatórias.


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O Navio de Teseu é um experimento mental cujo pressuposto é perguntar se um objeto continua sendo o mesmo, após todas as suas peças e componentes originais forem substituídos ao longo do tempo.


Segundo a lenda Teseu, o rei grego fundador da cidade de Atenas, resgatou os filhos da deusa Atenas do rei Minos depois de matar o Minotauro naquela treta clássica do labirinto lá e depois escapou em um navio para Ilha de Delos.


Desde então todos os anos os atenienses passaram a comemorar esta lenda levando o navio em peregrinação até Delos e homenagear o deus Apolo, o filho de Zeus, famoso por ser bonito e deus do sol, das artes, da música, da profecia, medicina e arqueiro temido por todos.


A questão do Navio de Teseu foi levantada por filósofos antigos: depois de vários séculos de manutenção, se todas as partes do navio tivessem sido substituídas, uma por vez, ainda seria o mesmo navio?


Segure esta pergunta e segue.


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Num dos testes de conformidade mais famosos, conhecido como o teste da sala de espera ou teste da sala de exames, três atores são colocados em uma sala de espera (ou de exames) orientados para todos automaticamente levantar e então sentar cada vez que uma campainha tocar.


A sala então passa a ser ocupada progressivamente com uma pessoa a mais por vez acreditando estar apenas esperando uma entrevista de emprego ou exame com outras pessoas já presentes no espaço.


A cada toque de campainha e de maneira geral cada nova pessoa obviamente estranha o ato na primeira vez, mas a partir do segundo ou terceiro toque começa a imitar o mesmo gesto, levantando e sentando como os demais.


De maneira geral também bastam apenas três pessoas a mais além das três originalmente presentes para criar uma nova cultura onde, mesmo tirando uma a uma das três primeiras (os atores), as três últimas continuam a repetir o gesto a cada novo toque de campainha e ao continuar retirando pessoas é muito comum uma única pessoa no fim continuar repetindo o gesto mesmo sem nunca ter sido obrigada nem ao menos solicitada a fazer isto, sequer sabendo também se está sendo vigiada ou filmada ou se este gesto faz parte da entrevista ou exame ou, como é o caso, pesquisa comportamental.


Segue mais um pouco.


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O Experimento de Milgram por sua vez ficou famoso quando a internet passou a se comportar como inteligentona em postagens do Facebook e o experimento em si envolve três pessoas, uma delas isolada por uma parede e outras duas no mesmo ambiente e somente uma das três está sendo analisada justamente por achar não estar sendo analisada.


Na parte isolada um ator grita fingindo sentir o máximo de dor suportável simulando receber um choque elétrico toda vez que uma luz acende e do outro lado está o chefe do experimento e na frente dele a verdadeira cobaia do exame, a pessoa que gira um botão acreditando estar aumentando a carga elétrica e então outro botão que dispara o suposto choque na pessoa do outro lado da sala.


O experimento então consiste em avaliar o quão disposta uma pessoa é em aceitar machucar progressivamente outra sem ver o rosto dela desde que outra assuma a responsabilidade por isto, no caso o chefe do experimento sentado atrás dela.


Em boa parte do experimento todos os participantes questionaram ao menos uma vez a respeito da dor e risco de vida da pessoa supostamente sendo eletrocutada do outro lado da parede, mas decidiram continuar até os níveis máximos solicitados pelo chefe da experiência com a afirmação de responsabilidade deste.


E se fizermos um exercício mental juntando o Navio de Teseu, o teste da sala de espera e o Experimento de Milgram e substituirmos peça por peça, pessoa por pessoa, choque por choque, o que acontecerá com o passar do tempo?


Segura esta pergunta também e segue mais um pouco.


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Três pequenas histórias nada aleatórias sobre lições menos aleatórias ainda.


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Laika foi uma cadelinha vira-lata russa, um dos primeiros animais no espaço e o primeiro a orbitar o Planeta Terra, a bordo da espaçonave Sputnik 2 lançada em 3 de novembro de 1957.



Laika foi traída duplamente por duas características inatas da sua existência, a confiança no ser humano por ser cachorra, e a resistência ao estresse por ser vira-lata.


Provavelmente uma mistura de Husky com Terrier a vira-lata foi resgatada nas ruas de moscou e foi escolhida entre outros cachorros por resistir com tolerância situações como confinamento e agitação de um modelo imitando a cápsula onde seria lançada para o espaço.


Nas vésperas do lançamento um dos cientistas da missão chamado Vladimir Yazdovsky levou Laika (latidora em russo) para casa para brincar com seus filhos e apenas entre cinco e sete horas após o lançamento a cadelinha morreria na quarta órbita da nave devido ao superaquecimento ou em outras palavras, morreu incinerada viva como numa carrocinha daquelas do início da revolução industrial.


Se ao menos a pobrezinha tivesse tido a chance de pousar e cavar um buraco na lua e deixar as suas pegadas por lá mas nem isso, todos os cães merecem o céu e Laika foi para lá da pior forma possível.


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10 anos depois da cadelinha Laika o cosmonauta Vladimir Komarov, no dia 23 de abril de 1967 (duas semanas depois do primeiro homem, o também russo Yuri Gagarin, orbitar o planeta), se tornou o primeiro cosmonauta soviético a voar no espaço duas vezes quando foi selecionado como piloto solo da Soyuz 1 (três anos depois da nave Voskhod 1, o primeiro voo espacial a transportar mais de um tripulante) e seis anos após Yuri Gagarin ser o primeiro ser humano no espaço a bordo da Vostok 1.



Como era padrão neste tipo de expedição sempre mais de um homem era treinado para a mesma missão evitando assim azares e prejuízos de última hora e desta forma em 1967 Yuri Gagarin e Vladimir Komarov foram designados para a Soyuz 1 e ambos sabiam que a cápsula espacial não era segura para voar e Komarov disse inclusive para amigos próximos saber que provavelmente morreria mas que ele não desistiria para preservar a vida de Yuri, ambos amigos, caçavam e bebiam juntos e Yuri antes de tudo já era um herói soviético, literalmente o o primeiro homem no espaço.


A missão programada para a nave era promover o primeiro encontro, acoplagem e troca de astronautas (ops, cosmounautas) entre naves em órbita da Soyuz 1 com a Soyuz 2 horas depois do lançamento da primeira.


Junto com outros técnicos ambos inspecionaram a Soyuz 1 e encontraram nada menos 203 problemas estruturais, problemas sérios tornando a nave perigosa para navegar no espaço e de acordo com Yuri Gagarin a missão deveria ser adiada, mas esta opção estava fora de cogitação e o voo aconteceria por pressões de líderes políticos soviéticos, que desejavam realizar uma grande missão espacial em comemoração ao aniversário de nascimento de Lenin e também os cinquenta anos da Revolução Russa de 1917.


Logo após o lançamento da nave um dos painéis solares não abriu comprometendo a energia de operação da nave e quando a Soyuz começou a orbitar o planeta começaram as falhas, as antenas não abriram corretamente e a energia foi comprometida e lançamento da Soyuz 2 no dia seguinte começou a ser planejado para consertar os painéis solares mas o problemas da Soyuz 1 foram se mostrando cada vez mais graves e na décima terceira órbita a estabilização automática estava completamente comprometida e a estabilização manual apenas parcialmente funcionando e o lançamento da Soyuz 2 então teve de ser cancelado.


E após esta decisão as autoridades disseram a Komarov para iniciar o processo de reentrada na Terra mas com todo este efeito cascata de defeitos e problemas as chances de Komarov retornar de forma segura eram mínimas.


Komarov sabia disto e antes de partir deixou claro e documentado o seu desejo final de um funeral com o caixão aberto para que os engenheiros, os líderes soviéticos e a imprensa mundial pudessem ver e guardar na lembrança a visão dos seus restos mortais.


A inteligência americana tinha uma base da força aérea perto de Istambul na Turquia e conseguiu captar parte da comunicação e últimos momentos de Komarov quando este, no pouco tempo de vida restante, se despediu da esposa e deu um recado para os filhos e então em plena queda nomeou com raiva todos os problemas e responsáveis pela tragédia anunciada.


Entrou para a história também como o primeiro humano morto em uma viagem espacial e até onde eu sei o único a se despedir nos seus momentos finais.


Com o impacto e a ação da gravidade o seu corpo se tornou irreconhecível e Vladimir Komarov foi velado com o caixão aberto de acordo com o seu desejo onde conta-se que a única parte visualmente identificável no meio da massa carbonizada era o seu calcanhar.



Sai dessa mente demônio das metáforas e perdoai-me Santa Cosmonauta da Igreja Ortodoxa Russa por mais uma (duas) metáfora(s) idiota(s) mas Vladimir Komarov foi o Tendão de Aquiles da corrida espacial da antiga URSS e definitivamente um osso duro de roer.


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Décadas depois, em 18 de maio de 1991, Sergei Krikalev partiu a bordo da espaçonave Soyuz TM-12 para uma missão de cinco meses na estação Mir em órbita para uma missão de rotina, reparos e melhorias na estação.


Mas enquanto as coisas corriam bem no espaço em questão de meses ocorreu o gradativo colapso da União Soviética enquanto Krikalev estava no espaço e em 25 de dezembro de 1991 a União Soviética finalmente entrou em colapso total, quando Mikhail Gorbachev anunciou sua renúncia supostamente por motivos de saúde e a URSS se fragmentou em 15 nações.


Na manhã seguinte o país que mandou Krikalev para o espaço já não existia mais e sua cidade natal, Leningrado, agora se chamava São Petersburgo.


Como o governo russo tinha dores de cabeças terrenas demais para se preocupar com outras coisas Krikalev ficou flutuando no espaço além do dobro do tempo que havia planejado e submetendo seu corpo e mente a efeitos desconhecidos.



Exatamente três meses depois da dissolução da União Soviética, em 25 de março de 1992, Sergei Krikalev retornou à Terra pousando em um novo país, Cazaquistão e por isso entrou para a história como "o último cidadão soviético".


Ao todo Krikalev passou trezentos e doze dias no espaço e circulou a Terra cinco mil vezes e com toda esta tribulação ganhou uma vantagem insólita: devido ao tempo passado no espaço longe do centro de gravidade da Terra, a dilatação do tempo (ou a desaceleração dos relógios) fez com que ele retornasse 0,02 segundos mais jovem do que outras pessoas nascidas na mesma época que ele.


Não morreu sem saber do que estava morrendo como a Laika e não voltou morrendo plenamente ciente da sua morte como Komarov, mas por muito pouco apenas não voltou.


A URSS deixou de existir e Krikalev voltou para um mundo onde as peças eram as mesmas mas não formavam mais o mesmo navio.


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Eu não sei dizer quantas peças e pessoas deveriam ser substituídas e mortas neste grande navio chamado URSS para a sua história ser diferente mas uma coisa me parece ser sempre clara, na tal engrenagem do poder a morte e o ostracismo parecem ser o único resultado quando este depende das decisões de um líder só.


Talvez não à toa e não muito longe dali (nem geograficamente e nem temporalmente) Mao Tse Tung se autodenominava O Grande Timoneiro da China durante campanhas como O Grande Salto Adiante, Campanha das Quatros Pragas, e os 10 anos da Revolução Cultural entre 1966 e 1976, cuja condução do navio dos loucos de olhos puxados foi tão desastrosa que apenas cinco anos depois o próprio Partido Comunista Chinês considerou oficialmente a Revolução Cultural o retrocesso político mais severo da história do país desde a fundação da República Popular da China décadas antes em 1949.



Qual o gatilho, qual o condicionamento, qual a campainha nos direciona e por que damos tanto poder na mão de outras pessoas a ponto delas se tornarem umas Kelly Keys dizendo quando nós temos ou não de babar baba baby baby baba e a gente virar cachorrinho por que a dona tá chamando?


Segure todas as perguntas.


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Mas por falar em terra à vista, azares e ficar à deriva podemos falar da possivelmente maior aventura e ao mesmo tempo desventura da história da humanidade de todos os tempos, desventuras em série para ser mais exato, quando todos tomaram no cu por dois anos seguidos, mas no final tudo acabou inacreditavelmente bem.


E aqui mesmo no nosso planetinha.


Mas antes ainda vamos falar de papel, pedra e tesoura para tentar responder(s) a(s) minha(s) pergunta(s) e cumprir a promessa de hoje não cumprida.


Isso mesmo, Jokenpô.


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Cápsulas do tempo.


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Fizeram uma reconstituição do rosto do Faraó Tutancâmon e ele ficou idêntico ao Silvio Santos, e na minha cabeça isso faz total sentido.


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O natal está chegando e parte deste horror inclui ser atacado nas redes sociais com fotos e vídeos de chocotones sangrando recheio, a feiura* e o mau gosto só perdem praqueles hambúrguer** que mergulham no cheddar.


Ficam iguais aos restos do Komarov.



Não faça isso com você, pague caro no panetone mas que seja de frutas, sabe como é, liberal na economia e conservador nos costumes.


Apesar de defender os panetones eu não tenho uma boa relação com os mesmos por dois motivos. O primeiro é ser ateu e todo mundo saber e o resultado é não ganhar panetone de ninguém e ter de comprar os meus sozinhos. O segundo é ser viciado em panetones, eu sou detentor do recorde de 90 (eu disse, noventa) panetones consumidos entre 15 de outubro de 2019 a 15 de janeiro de 2020, um panetone por dia (metade depois do almoço, metade depois do jantar, durante três meses.


Mas eu me curei, no natal de 2020 comprei apenas três, que comi em dois dias, e ressuscitei no terceiro dia curado.


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* Acabei de descobrir que feiura, assim como cu, não possuem mais acento.

**o plural de hambúrguer ali está errado de propósito, aceite.


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