Foto: Ayrton Cruz
Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.
--
09/08/2023
VAGA-LUMES
--
A noite dos vaga-lumes, pacote econômico.
--
Não muito tempo atrás eu vi dois vaga-lumes e daí a hora de dormir virou mais um amanhecer acordado.
Quantos anos eu não via um único vaga-lume, imagina dois.
Pode parecer pouco pra você mas para quem vem do interior e passou a infância contando eles às centenas foi o suficiente para me deixar acordado. Se descobri ser insone por causa de um cachorro igualmente diagnosticado, descobri a origem da minha insônia por causa de dois vaga-lumes.
Eu não estava sozinho, eu estava acampando com a pessoa que eu mais amo nesta vida, e poucos minutos antes ela mesma havia dito isto a meu respeito.
Apesar de todo o romance, ela não é perfeita. Tem péssimos hábitos como roncar rindo e rir roncando, e não admitir isso obviamente. Some também as manias de dormir falando e falar dormindo e pronto: Uma vida de rir do riso, hipnoses involuntárias, confissões inconscientes e lembranças não confirmadas.
E assim foi mais uma noite, disse que me amava e começou a dormir no meu lado no minuto seguinte.
E alguns minutos depois, os vaga-lumes apareceram.
Apenas dois, como já disse, mas foram o suficiente pra me emocionar. Apontei e disse:
- Olha dois vaga-lumes.
E ela, de olhos meio abertos, meio fechados:
- Lindos.
E eu:
- Quando eu era criança eles apareciam em centenas, e ficavam até amanhecer.
E ela:
- Nossa (suspiro do além).
E assim o papo seguiu nesse clima de monólogo assistido de olhos fechados, pontuado com sorrisos preguiçosos, olhares vesgos e uma coleção de uhums resmungados.
Não me abalei. Decidi seguir falando sozinho acompanhado e contei da história relativamente conhecida como “A Noite dos Vaga-lumes” de quando o empresário Francisco de Assis Chateaubriand de Mello, o Chatô, mandou o presidente da companhia Light no Rio de Janeiro apagar as luzes da cidade em frente ao Hotel Copacabana Palace, apenas para impressionar a sua amante, levando um carro com o porta-malas cheio de vaga-lumes iluminando a frente do quarto onde ela estava.
E ouvi como resposta:
- E você só traz dois, mão-de-vaca.
E respondi rindo:
- Comprei o pacote econômico.
Bom, pensei, pelo menos não era um carro de som tocando "Fogo e Paixão" do Wando.
Se morasse no interior seria bem mais fácil, era só sair do centro da cidade ou seja, andar menos de um quilômetro e o céu e os vaga-lumes dariam conta do recado.
Aí é raio, estrela e luar, e vaga-lumes.
De graça.
Aproveitei que ela parecia estar mais acordada e comentei:
- Bem que eles podiam ter aparecido na hora que você disse que me amava né.
E ela:
- Na edição do filme a gente faz isso.
Concordei rindo.
Com esta resposta ela desistiu de mim e dormiu de vez. Não posso culpá-la, insones nunca entendem o fato de como o sono é inevitável para pessoas normais. Ou preguiçosas. E os vaga-lumes foram embora e também não posso culpá-los, ficar acordado pensando neles foi opção minha. E pelo clima entre os dois, estavam namorando também.
Quando ela falou em filme imediatamente lembrei de Setsuko e Seita abençoados por vaga-lumes e amaldiçoados por um B-29, e agradeci por nunca ter vivido uma guerra, nem criança, nem adulto.
Quando eu era criança eles eram tantos, mas tantos, tantos o suficiente a ponto da gente dizer existir mais vaga-lumes que estrelas nas nossas noites de primavera e verão.
Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia, diria Shakespeare. Vaga-lumes, diria eu.
Invadiam as garagens, cozinhas, salas e quartos.
Vaga-lumes podem até assustar mas não se importam com nós humanos e quando pousam em você são calmos e gentis, não entram em seus ouvidos nem atacam seu nariz. Existe um certo charme e simpatia nesta indiferença.
Nunca vi ninguém sair correndo e gritando pegar o chinelo ou spray para matar vaga-lume. Não são destrambelhados e alucinados como as mariposas e não voam como se fossem terroristas do 11 de Setembro igual baratas na sua direção, parecem mais aviões calmos e organizados na tela de um controlador de voo esperando a sua vez de pousar.
Vaga-lumes sabem a hora de chegar, como se sentar na mesa e a hora de ir embora.
Só não sabem apagar a luz.
No interior não se contam carneirinhos para dormir no verão, contamos vaga-lumes. E se o sono não vem contamos quanto tempo demora entre uma piscada e outra. E aí então contamos quantas piscadas eles dão em um determinado intervalo de tempo, geralmente a noite toda.
E eles aproveitam para nos confundir trocando de lugar antes de piscar novamente de modo que logo você não está mais contando nada com nada pois não sabe mais qual vaga-lume estava contando e não desiste pois assim fica mais divertido ainda.
Volta e meia um deles se aventurava pela minha cama e acabava entrando pelas cobertas e assim, muito antes da primeira namorada e da camisinha fluorescente, lá estava meu saco verde e brilhando. E piscando.
Entre carneirinhos voadores e testículos piscantes uma hora o sono vem, os vaga-lumes desaparecem e o dia amanhece.
Faz sentido, o brilho do vaga-lume brilhar vem da luciferina. E luciferinas, segundo a Wikipedia, são substratos de enzimas denominadas luciferases, que realizam a descarboxilação oxidativa das luciferinas (sob a forma de adenilato de luciferina, obtido através da ativação de luciferina por ATP) a oxiluciferinas, usando oxigénio (O2) e produzindo energia luminosa nessa reação.
As oxiluciferinas podem ser regeneradas posteriormente a luciferinas.
Eu também não entendi, parece questão de vestibular.
Mais divertido é saber que luciferina vem de Lucífer, do latim "Lux" (luz), e "Ferre" (levar, portar). Lúcifer é o portador da luz, ou a estrela da manhã ou ainda o filho da alvorada, a luz do amanhã.
Agora sim.
E como sabemos, na tradição moderninha cristã Lúcifer é um dos nomes do diabo então os vaga-lumes seriam diabinhos a atormentar nosso sono e nos levar para o mundo da imaginação e dos sonhos lúcidos, anjos-caídos desocupados, ocupados em nos deixar acordados.
Aliás, faria muito mais sentido ainda se a camisinha radioativa para pênis festivos tivesse sido inspirada nos vaga-lumes pois além do diabo, Lúcifer é também a representação de... Vênus, aquele planetinha vaidoso e ciumento que vive de competir com a lua e insiste em brilhar até o sol se impor.
Insones conhecem bem.
Vênus também é a deusa do amor, da vaidade, da fertilidade e do desejo. Vênus representa a mulher. Incluindo as preguiçosas que riem roncando, roncam rindo, dormem falando e falam dormindo.
Insones conhecem bem também.
E é por amor e desejo que os vaga-lumes acendem a sua luz procurando as suas namoradas no escuro, ele avisa piscando que está chegando e ela pousa e pisca para mostrar onde está autorizando o pouso, assim o vaga-lume macho pode bancar uma abelha pra pousar na sua flor (haja amor, haja amor), então talvez o Chatô estivesse certo e seriam os vaga-lumes mini-Wandos bregas e piscadores.
Como se fosse pouco, os seus olhos também brilham.
Vaga-lumes são legais. Eles podem ser muita coisa: estrelas que vieram passear na terra, ou anjos caídos, ou fábulas vivas, ou tarados com lanternas ou apenas seres com asas e bundas luminosas, e isto é legal demais.
Diante do infinito, somos apenas um pálido ponto azul, diria Carl Sagan.
Somos cálidos pontinhos verdes, diriam os vaga-lumes.
E por falar em insônia, vênus que ronca, amor e manhãs, amanheceu.
Ela acordou para fazer xixi e eu fui dormir me coçando cheio de picadas de mosquitos.
Deve ser parceria: os vaga-lumes nos distraem, os mosquitos nos assaltam, a natureza é sábia.
Dia destes eu comentei com um amigo como a pior solidão existente é a solidão à dois, quando você mesmo estando com uma pessoa se sente sozinho.
Por outro lado não parece existir sensação melhor que estar sozinho do lado da pessoa reciprocamente amada, quando ela está dormindo e você lendo um livro, ou quando você vai dar uma corrida enquanto ela assiste um filme ou ela estudando e você cozinhando, ou ainda uma roncando e a outra falando sozinha com vaga-lumes.
É do Carl Sagan também a frase e aquela que eu considero a declaração de amor mais bonita de todas, quando ele escreveu uma dedicatória para a sua então esposa Ann Druyan:
"Diante da vastidão do tempo e da imensidão do universo, é um imenso prazer para mim dividir um planeta e uma época com Annie.”
Você já leu esta frase algumas linhas e linhas atrás, mas agora enfim eu posso concluí-la.
Afinal, para os vaga-lumes tudo pode mudar em apenas uma piscada.
É sobre isso, como diria o Instagram.
Amar alguém é ceder o nosso espaço e dividir o tempo, nossos bens mais preciosos. É cada um manter o seu próprio mundo, ou seu planeta individual, mas na mesma galáxia e no mesmo campo gravitacional chamado amor, essa massa densa e escura sem explicação ocupando um espaço-tempo de um piscar de olhos, rodeados de estrelas.
Ou vaga-lumes, mesmo que apenas dois.
We are fourth dimensional beings inhabiting a three dimensional body in a bidimensional world living unidimensional lives.
--
Por falar em Carl Sagan (de novo) eu e um amigo meu estávamos em uma destas festas com música ruim (você sabe qual tipo de festa é) e parece existir uma fórmula tão universal e imutável quanto as leis da física: quanto pior a música mais lindas são as mulheres, ou quanticamente falando, quanto mais lindas forem as mulheres pior será a música tocando.
E mais comum ainda, nestas festas elas rebolam.
E rebolam.
Em algum momento durante esta noite de amor e ódio que são esses ambientes uma delas começou a rebolar na nossa frente. Muito. Este meu amigo olhou e olhou, olhar ele era tão ou mais divertido que olhar a bunda da digníssima e nisto ele se aproximou de mim e disse, sem tirar os olhos da bunda dela:
- Não sei porque a gente tem de ir pra lua se tudo o que a gente precisa tem aqui.
Nem Carl Sagan seria capaz de tamanha abstração mental aleatória, um pequeno passo para o homem, uma grande rebolada para a mulher.
--
E por falar em olhar o céu toda noite de verão parece uma eternidade muito breve e eu tenho uma interpretação de que dias de verão parecem a Jornada do Heroi, e o Arco-Íris após a chuva é o momento mais difícil.
--
Cápsula do tempo.
--
O assunto do momento são os filmes da Barbie e Oppenheimer, fenômeno que já entrou para a história do cinema sob o apelido de Barbenheimmer.
A Barbie ganhou a disparada com um dos marketings voluntários mais agressivos da história da cultura pop, um exército de blogueiras e influencers vestidas e paramentadas de rosa, com suas maquiagens rosa e badulaques rosa pendurados pelo corpo todo, tomando drinks e comendo doces rosa embalados em plástico rosa e que em menos de um ano já estarão colorindo o fundo dos oceanos.
E você pensando que nada poderia ser pior que uma bomba atômica hein.
--
Comments