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ENSAIO 51: CHORÃO

Atualizado: 19 de out.




Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece naturalmente pelo primeiro.



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07/03/2024

CHORÃO


Só os matemáticos sabem.


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Em qualquer triângulo retângulo, o quadrado do comprimento da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos comprimentos dos catetos


Em outras palavras, A ao quadrado igual B ao quadrado mais C ao quadrado.


Uma questão de vestibular, este é o legado da Escola Pitagórica para nós, escola fundada por Pitágoras, o filósofo (des)conhecido por não ter deixado nada escrito mas que também influenciou o futuro platonismo, o cristianismo e ainda sociedades secretas desde o Império Romano e claro, a matemática e a geometria.


A própria palavra matemática surgiu com os pitagóricos, a concepção de um sistema de pensamento em bases dedutíveis e a crença na qual a matemática é o alfabeto usado pelos deuses quando escreveram o universo, e até mesmo o símbolo da Escola Pitagórica era um pentagrama, reforçando ao mesmo tempo o lado matemático-geométrico e o ar de seita respirado pelos seus seguidores.


Logo, e possivelmente por isto mesmo, os pitagóricos são relacionados à geometria sagrada que também se encontra em praticamente todas as grandes religiões espalhadas pelo mundo e a passagem de Pitágoras na história da humanidade tem algumas passagens interessantes, outras nem tanto.


Por exemplo, um dia ao passar por um ferreiro Pitágoras ouviu as notas produzidas pelos golpes nas bigornas e notou a perfeita harmonia do som emitido pelas pancadas.


Tentando buscar uma explicação racional para entender recorreu à matemática e descobriu que os intervalos entre as notas musicais quando em harmonia sempre apareciam em proporções de números inteiros e chegou à conclusão de que todo o Universo havia sido construído a partir de números.


Mas apesar desta aparente vida diária de rotina idílica, de acordo com biógrafo Diógenes Laércio, Pitágoras não se entregava aos prazeres do amor e advertiu os outros a fazer sexo apenas, segundo suas palavras:


- Quando você estiver disposto a se tornar mais fraco do que está.


Não sei dizer e não entendi se estas palavras foram de Pitágoras ou de Diógenes sobre Pitágoras pois quem escreve a história vitimiza os fatos eternamente, e também não sei dizer se Pitágoras ou Diógenes estavam alegando se sexo enfraquece ou apenas cansa, mas talvez a resposta venha de outros fofoqueiros do período pois também conta-se que Pitágoras teve vários filhos filhos com várias mulheres diferentes (incluindo várias casadas com outros homens), então não morreu virgem nem foi celibatário, logo podemos concluir que a sua grande fraqueza foi a hipocrisia, desejando virgindade e celibato para os outros e vaginas para ele, comendo todas as Helenas e Teoremas da vizinhança, o que deve ter colocado a sua vida em risco pois cornos e virgens desocupados são antes de tudo arruaceiros irracionais.


Mas ainda assim tudo parecia ir matematicamente bem entre os pitagóricos até a chegada de Hipaso de Metaponto, um tipo de nome tão pomposo quanto prepotente, ao qual fez juz pois até então a geometria e a aritmética tinham um caráter utilitário e intuitivo, focadas em problemas práticos e na classificação dos números em pares, ímpares, primos e racionais, os famosos números que podem ser representados na forma de fração.


Mas Hipaso queria mais, embora fosse aluno e seguidor de Pitágoras um dia ele acordou e provou a existência dos números irracionais, na época os pitagóricos estavam acomodados e pensavam que os números racionais poderiam descrever toda a geometria do universo conhecido.


Números irracionais também fazem juz ao seu nome. São números decimais, infinitos e não-periódicos e não podem ser representados por meio de frações irredutíveis, é impossível que um número seja irracional e racional ao mesmo tempo (o Pi por exemplo é um baita de um irracional) e realizar as quatro operações básicas entre números irracionais nem sempre vai gerar um número irracional como resposta (pode ser que a resposta destas operações seja um número natural ou um número inteiro ou até mesmo um número racional), e esta descoberta ameaçou destruir a própria base da filosofia de Pitágoras.


Basicamente a revelação provou que Pitágoras e seus seguidores não eram mais donos de uma verdade: o dogma de todas as suas medidas era falso e o poder atribuído aos números também, se os números naturais (então a essência da realidade) nem sempre serviria para encontrar a medida das coisas, tampouco seriam o meio de conquistar o conhecimento divino.


Os números não eram mais o caminho, mas um empecilho no vestibular de uma passagem desta para uma melhor


Mas matemáticos são ágeis em buscar soluções e encontraram logo uma bem simples na risca do giz, somaram-se numericamente, ameaçaram a unidade Hipaso e o obrigaram a ficar em silêncio.


Hipaso como um bom irracional não resistiu, quebrou a regra de silêncio e revelou ao mundo a existência destes novos números, provavelmente declarando:


- Os números irracionais são não tão complicados demais, mas nem tão simples assim, tamo aí na atividade, eu não vim pra me explicar, eu vim pra confundir. Se o triângulo tem dois ângulos retos, eu tenho um lado irônico, tenho um lado insuportável, eu tenho um lado amável, e cada um tem o meu lado que merece. Não busco a perfeição em ninguém, porque não quero que busquem em mim, eu sou o errado que deu certo, mas quem é que é o errado no mundo dos espertos? Eles dizem que é impossível encontrar o amor sem perder a razão, mas pra quem tem pensamento forte o impossível é só questão de opinião. Só os loucos sabem, um homem quando está em paz não quer guerra com ninguém.


Não deu muito certo, os pitagóricos poderiam se resignar com a existência de Hipaso na comunidade e aceitar o fardo como Sísifo ou rir da situação como Crisipo mas não, desceram a tabuada no camarada sem dó, provavelmente armados com réguas e esquadros.



Existem outras versões (como em qualquer briga envolvendo mais de duas pessoas), dizem que os pitagóricos expulsaram ele e colocaram uma tumba com o seu nome no cemitério, declarando-o morto.


Outros dizem terem visto ele morrer em um naufrágio de circunstâncias misteriosas ou se suicidou como autocastigo, ou Pitágoras em pessoa o condenou à morte e seus seguidores, anseando por recuperar a racionalidade através da irracionalidade, afogaram Hipaso.


Pitágoras seguiu catando várias mulheres, convocou os amigos, comprou todo o sistema, mandou matar os inimigos mas tempos depois alguns cidadãos de uma cidade vizinha propuseram uma constituição democrática para a região, rejeitada pelos pitagóricos (se os próprios fundadores da democracia rejeitaram ela antes de morrer, porque Pitágoras aceitaria?) e atraindo a ira da população, cercando e espancando Pitágoras e seus seguidores até a morte (o que também não surpreende pois desde sempre quanto mais democracia se pede mais ferramenta de linchamento ela se torna).


Também existem outras versões para a morte de Pitágoras, incluindo suicídio por desgosto ao ver seus camaradas serem mortos e a minha versão favorita, a de que todos fugiram e chegaram à cidade de Metaponto, onde se abrigaram no Templo das Musas e morreram de fome depois de quarenta dias sem comida, provando que se um triângulo com seus meros três lados gera essa brigalhada toda, a lei do retorno é um compasso que só descansa quando o círculo se fecha.


Hipaso pagou para ver, desiludido da vida, pagou para ver, tcharro ladrão, qual é o sentido da vida?


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Todo mundo nasce virgem, mas quando você entende o significado de virgindade repentinamente vem o sentimendo de que você vai morrer virgem, aí você repentinamente perde a virgindade e então descobre que, assustadoramente, ainda é virgem.


As mulheres, pelo menos as da minha geração, tinham todo um protocolo para perder a virgindade: com quem elas perderiam a virgindade, onde elas perderiam a virgindade, qual música tocaria quando elas perderiam a virgindade, o que elas vestiriam quando elas perderiam a virgindade, quanto tempo demoraria para tirar o que vestiriam quando elas perderiam a virgindade, para quais amigas contariam quando elas perderiam a virgindade.


Homens não, só existia uma preocupação: quando.

E contariam para todo mundo, se possível no horário nobre da TV.


Por exemplo, eu perdi a virgindade com a Madonna, mais precisamente com um poster da Madonna, mais precisamente com um poster da Madonna vestida de noiva, mais precisamente com um poster da Madonna vestida de noiva mostrando o suvaco, mais precisamente com um poster da Madonna vestida de noiva mostrando o suvaco e em cima dela estava escrito LIKE A VIRGIN.


Óbvio que eu não vou entrar em detalhes mas no mesmo dia saí contando para a cidade inteira para descobrir que depois de tanto esforço e vergonha eu ainda era virgem, a qual só fui perder de fato com a ajuda do Nirvana.


O destino prega esse tipo de peça na gente, um dia é like a virgin e o outro é nothing else matters pois você não é mais virgin anymore mas vidas virgens importam, e proteger os amigos importam na mesma proporção, e antes deste momento tão épico quanto parar de fazer xixi na cama eu e meus amigos (uns virgens outros não, todos igualmente revoltados), surramos o Chorão.


Duas vezes.


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Você conhece o Chorão, todos conheceram, todos conhecem, todos conhecerão, figura tão icônica que se tornou meme na era do meme-raiz na era de ouro na internet e até hoje influencia gifs e designs de péssima qualidade pelas redes sociais, incluindo o pitoresco design com flores e brilhos angelicais e fontes cursivas que anos atrás só imagens católicas tinham autorização para usar.


Skatista, cantor, compositor, filósofo contemporâneo, matemático das coisas boas, padroeiro dos vagabundos, role model das meias brancas, e encarnado.


Você pode não conhecer a gíria mas conhece o tipo, ele existe até mesmo fora do círculo dos skatistas e é muito fácil de reconhecer o encarnado por exemplo quando tem inauguração de pista de skate nova, ele aparece do nada e rouba a cena.


É aquele cara que parou de andar três anos atrás, mal sabia dar um ollie flip mas agora ele voltou encarnado e agora ele só solta as encarnadas e só manda as impossíveis ou melhor, as impossibles, e só quer saber de manobra que até para falar tem de praticar muito tipo nose-bleed-impossible-shove-shift, ninguém sabe o que é um nose-bleed-impossible-shove-shift, ninguém nunca viu um nose-bleed-impossible-shove-shift mas o encarnado sabe do que se trata o nose-bleed-impossible-shove-shift, mas ele nunca aprendeu a mandar o nose-bleed-impossible-shove-shift e aí ele vai em todos os corners e rampas e savanas da pista nova e manda o nose-bleed-impossible-shove-shift, e obviamente ele erra em todas e aí ele dá aquele grito encarnado AAAARRRGH sinalizando para todo mundo que hoje ele está tendo um dia ruim e não está acertando o nose-bleed-impossible-shove-shift de jeito nenhum, esse é o encarnado.

Tem encarnado na literatura, no cinema, na música e na política, em toda rodinha de amigos tem pelo menos um encarnado.


O Chorão era encarnado, perna pesada, pegava embalo igual um rinoceronte, não andava o suficiente bem para impressionar mas dava conta do recado.


E todo mundo que conhece o Chorão ou seja, todo mundo, sabe da fama de brigão dele, e absolutamente todo mundo que passou pela vida dele brigou com ele ou melhor, muito mais provavelmente, ele brigou.


Até mesmo eu, que nunca conheci ele briguei com ele ou melhor, ele brigou comigo, não exatamente comigo mas sabe como é, mexeu com um virgem mexeu com todos.


O Chorão morava em Santos mas também viajava para competir de skate em outros estados e para incomodar.


E como incomodava. Bebia, arrumava briga, batia, apanhava e desaparecia.


Nada muito original, no meu tempo este era o resumo da vida de um skatista: beber, brigar, bater, apanhar, desaparecer.


Mas existem certas regras.

Não escritas como as de Pitágoras, mas existem.


Uma delas, talvez a principal, era não agredir alguém quando esta pessoa estivesse em cima do skate, muito menos ainda em um campeonato.


Pista de skate é solo sagrado mas o Chorão não pensava deste jeito e foi lá e passou a perna na frente do skate do Zé durante a sessão dele, e o Zé voou antes de dar com a cabeça no chão.

Ninguém fez nada, nem gritos nem vaias, nem palavrão, afinal o Zé nunca brigava com ninguém e de alguma forma o campeonato inteiro esperou a reação dele.


O Zé levantou e quando se aproximou do senhor já era, este começou a choramingar dizendo que tinha sido sem querer, que estava sentado no chão e seria covardia agredir alguém assim.


O Zé relevou.


Quando pôs o skate no pé de novo, o Chorão passou a perna, de novo.


Foi a senha geral que liberou todos os golpes de todos os que se dispuseram, incluindo eu, e todos fomos para cima numericamente irracionais com chutes, socos e skates, todo os nose-bleed-impossible-shove-shift onde pudéssemos acertar nele.


E assim como os pitagóricos não eram pessoas melhores que Hipaso nós também não éramos lá flores que se cheire, Chorão não teve tempo de se levantar para se defender, puxou briga como jiu jiteiro e apanhou como maloqueiro


A polícia veio e lembro dele indo embora gritando sobre ser apenas um turista de São Paulo sendo mal recebido ou coisa parecida.


No ano seguinte a mesma, a mesmíssima situação. Eu ainda virgem e o Chorão apareceu de novo, para apanhar de novo, sabe Deus qual metaponto ele queria provar mas o indivisível e irracional Chorão tentou.


Me identifiquei, eu mesmo voltei para Curitiba para apanhar uma segunda vez e ao invés tive o azar de fazer amigos brigões.


A única diferença é que desta vez o Zé tomou a dianteira, adotou o modo agredir para se defender e começou as agressões, e depois todos nós de novo


Outra diferença é que nesta segunda vez eu estava mais maduro, menos violento e mais estratégico, ativei o beisebol de estádio de futebol e atirei de longe uma garrafa de cerveja, de vidro, cheia. Sorte de todos e do destino que a minha pontaria garantiu apenas uma bela e cinematográfica espatifada no chão e o Alessandro me chamando de burro por ter errado.


O mesmo Alessandro que me mandou jogar a garrafa.


Não mexa com um virgem com uma garrafa de cerveja na mão disposto a fazer qualquer coisa que seus amigos peçam, e então veio a polícia de novo e o Chorão foi embora de novo, desta vez gritando que nunca mais iria voltar.


Não voltou mesmo, pelo menos não lembro mais dele por lá enquanto andei de skate, cagou regra como Pitágoras e apanhou como Hipaso, ninguém mandou mexer com skatistas virgens encarnados.


Quando anos depois o Charlie Brown Jr ficou conhecido e o Chorão famoso ficamos felizes, afinal de contas ele era um dos nossos, um dia vi ele na capa de um CD da banda dele, reconheci aquela cara na hora e apenas pensei: Eu já surrei este filho da puta e o filho da puta agora tá famoso.


E o disco era bom.

E a banda era boa.

E ele cantava sobre coisas que eu vivia e entendia.


E os shows eram ótimos.

E eu falava para as pessoas que já havia surrado ele.

Ninguém acreditava.


Quando a Igreja Bola de Neve Church surgiu com aquela pegada jovem skate boné meias brancas eu podia jurar que era coisa do Chorão, tão normal ver roqueiro virar crente e logo imaginei ele pregando e rimando:



Tirou a túnica abriu o mar

Pensei meu Deus que bom que fosse


Tu me apresenta esse Moisés

Irmão te devo até um doce


Doce de tâmaras é demais

Também por isso eu creio em Deus


Deixe benzer

Deixe rezar

Deixe o mar como está



Chorão não está mais entre nós, morreu aquela vida triste da overdose tão previsível e ao mesmo tempo tão assustadora cocaína, a vida cobra o seu preço curto e o prazo nem sempre é longo.


Você pode chamar Chorão de fuleiro mas ele não está muito atrás dos filósofos gregos e eu diria até que ele era melhor, se você prestar atenção com os devidos olhos para a filosofia grega tudo terminava em pancadaria ou evenenamento ou facada nas costas por causa de chifre, furto, pé na bunda, mulheres com cabelo de cobra e homens com casco de cavalo.


Chorão nosso Platão, descanse em paz maluco, o nosso Salinger eterno adolescente cantando sobre temas adolescentes para eternos adolescentes, que não sabia nada de matemática, era um estúpido em francês, não sabia nada de geografia mas era perito em anatomia e manjava um pouco de inglês.


E ainda rimava anel com motel.



Eu nem gosto tanto dele assim mas depois de quase ter encerrado a carreira dele antes mesmo da fama o mínimo seria homenagear ele escrevendo algumas linhas, e como lembrou um amigo meu você pode levar uma vida inteira dialogando e usando apenas frases de músicas do Charlie Brown Jr.


Mas agora eu preciso falar sobre algo um tanto mais polêmico que meias brancas cagadas e skatistas surrados: o lendário, mitológico, bíblico, imcompreendido, renegado, excessivamente racional e mal falado, sapatênis.




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