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ENSAIO 67: CARANGUEJOS

Atualizado: 26 de dez. de 2024



Se você está aqui pela primeira vez este ensaio faz parte de um livro sendo escrito em tempo real seguindo a narrativa do fluxo de consciência, se te interessar acompanhar o processo comece pelo primeiro.



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11/12/2024


CARANGUEJOS


Um puxa todos, todos puxam um.


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Se Stanislav Petrov fosse brasileiro, a metáfora-piada do caldeirão não precisaria do inferno nem de diabos, nem russos, bastaria uma panela com água e caranguejos.


Bichos sem frescura na hora de comer, a maioria dos caranguejos é onívora ou seja, come de tudo um pouco: folhas, frutas, bichos menores e até restos de matéria orgânica.


Conhecidos por algumas espécies possuírem uma garra absurdamente desproporcional em tamanho em relação à outra que serve ao mesmo tempo de arma e escudo e caminham de lado como se estivessem sempre se esquivando de algo, e pelo (não muito) engraçado hábito de puxar os outros caranguejos para baixo quando estão em uma panela ou cesto, se um tenta escapar os outros acabam segurando ele, e ninguém consegue sair.


Caranguejos são estranhos, se todos ficam, todos morrem.

Se um tenta sair, todos puxam ele de volta, e então todos morrem.


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Além do itálico o Márcio também manja de teorias espúrias.


Segundo ele o passado e o futuro não existem, apenas o presente existe, mas o presente a todo momento se torna passado ou você não está presente sentindo ansiedade do futuro, logo o presente também não existe, definindo involuntariamente a maneira como eu enxergo a história do Brasil, e me lembrou como eu mesmo me enxergo geograficamente dentro do nosso país, também inexistente.


Eu sou paranaense, mas se estou no Paraná dizem que virei manezinho catarinense, e metade das minhas gírias são gaúchas e a outra metade são gírias paulistas, minha alma é de baiano e o meu coração é mineiro.


Quando se nasce e cresce no sul do Brasil você mesmo não querendo acaba por ter uma visão limitada do seu próprio país e claro, um tanto quanto exigente e bairrista sobre qual seria o seu Brasil ideal: o meu teria praia com geada, nordeste com pinhão na beira do mar, e quem sabe neve em Fernando de Noronha no inverno.


Se gaúchos já foram avistados tomando chimarrão em plena Manaus eu posso muito bem sonhar com pinhão na praia, mas o fato é que imaginar o calor além do Estado de São Paulo sempre me apavora, e conhecer um pouco deste Brasil calorento me fez entender porque eu odeio tanto este país, algo que só se tornou claro e mexeu muito comigo quando fui para Recife.


Terra de Clarice Lispector, Reginaldo Rossi, Naná Vasconcelos, Manuel Bandeira, o infame Romero Britto e o Chico.


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Fez sucesso um tempo atrás um site onde você clicava apenas um botão e ele sugeria uma música horrível para você ouvir. Parece ruim mas o motivo era nobre: fazer você esquecer outra música ruim que não saía da sua cabeça, literalmente trocando por outra pior.


E eu vou fazer isto com você agora pela segunda vez para falar de um cara muito legal na história da música popular brasileira.


Quando aquele grupo As Meninas surgiu do nada das rádios e TVs cantando Xibom Bombom (viu só) eu não fiquei tão irritado, afinal aquilo ali era uma releitura de Chico Science & Nação Zumbi:


A cidade não para

A cidade só cresce

O de cima sobe

E o de baixo desce


A cidade não para

A cidade só cresce

O de cima sobe

E o de baixo desce


O grande Francisco de Assis França, conhecido Chico Science, poeta, dançarino, compositor, cantor e frontman carismático ao lado da sua banda Nação Zumbi, nascido em Olinda e tragicamente morto no auge da carreira em um acidente de carro entre sua cidade natal e Recife, rapper-repentista com a classe e sotaque que só nordestino tem, letrista simples e efetivo com tanto sucesso a ponto de até hoje suas frases e rimas serem parte do vocabulário brasileiro, e seus dois álbuns com a banda além de terem sido discos de ouro em vendas também estão sempre juntos nas listas de cem discos mais importantes da música brasileira.


Nação Zumbi era Rock, era MPB, era Samba, era Hip Hop, era Heavy Metal, era Maracatu, era divertido demais.


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Ao contrário das profissões informais e degradantes do Fefo, o Gustavo sempre esteve antenado ao melhor nos diferentes momentos da sua vida.


Não sei se ele manja de itálico mas já foi naturólogo, estudólogo de moda e confecção, abriu uma empresa para cafélólogos, deu uns rolês de motólogas, já foi até DJ de musicólogas e agora se define como RealState BioHacker.


Calma, não é nada demais, traduzindo de forma livre ele agora é apenas um CorretorDeImóveis que ComeCarne, mas escrever em inglês sempre impõe mais moral, principalmente quando se trata de um ex-viciado em temakis, barrinhas de cereal e óleo de coco, e responsável por me fazer criar o ditado: nunca subestime um homem com coragem de usar calça saruel.


Se ele tivesse a possibilidade de corrigir este texto (nunca terá), provavelmente mudaria de corretor para incorporador mas quem incorpora é pai-de-santo, e isto (por enquanto) o Gustavo não é.


Como qualquer empreendedor no Brasil o Gustavo tem refletido bastante, analisando esta cadeia hereditária para se livrar da situação precária a qual nosso país se encontra e quando conversamos sobre a minha tendência natural é puxar o papo para o passado e então puxar a corda de volta tentando entender como estamos e chegamos onde estamos e chegamos.


Estes tempos comentei com ele sobre uma obra abandonada a qual eu passo na frente quase todos os dias no caminho de casa e lembrei de uma entrevista com o guitarrista Kiko Loureiro falando sobre a vida na Finlândia e comentando algo muito interessante por trás de uma rotina diária muito simples.


Perguntaram apenas se o europeu não toma banho, tentando criar aquele humor de podcast chulo de sempre, e ele explicou a diferença na relação do europeu com a água.


No Brasil, fora parte do nordeste, sempre tivemos água em abundância e nos serve de tudo: irrigar, matar sede, tomar banho, aproveitar cachoeiras, lagoas e o mar, a água faz parte da nossa vida mesmo que a gente não seja surfista ou velejador ou algo parecido, o brasileiro sempre tem disponível e sempre vai na direção da água.


Na Europa a relação é diferente porque historicamente além de escassa a água também trouxe doenças e matou muita gente, a Peste Negra no século 14, O Grande Fedor de Londres no século 19, as Pedras da Fome nos rios Elba e Reno indicando os períodos de seca ao longo dos séculos passados e outras épocas e episódios trágicos ligados aos rios.


Poucos lugares na Europa têm mar e muitas vezes são praias não habitáveis nem frequentáveis e por isto a água não desperta boas memórias, os europeus bebem porque é necessário e tomam banho porque precisam, e ainda precisam economizar.


A história do continente europeu é marcada por estas limitações e brigas por recursos até os dias de hoje; e cada país passou por momentos de escassez crítica não só de água mas outros elementos essenciais como carvão, ferro e alimento, motivando grandes migrações, guerras e escravidão onde até seres humanos foram tratados como recursos, seja como força de luta, trabalho ou até mesmo reprodução.



O Brasil me irrita muito, passei uma vida alimentando o sentimento de raiva e me perguntando por que eu nasci aqui e todas as vezes quando fui para fora me senti pequeno quando eu percebi o quanto sou brasileiro, como se todo mundo estivesse me olhando e apontando “olha o brasileiro ali”.


Ao mesmo tempo nos últimos anos tenho viajado bastante dentro do Brasil, interior de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, Belo Horizonte e interior de Minas Gerais, capital e interior do Estado de São Paulo, e Recife.


Em Recife encontrei a melhor equipe de pessoas com quem já trabalhei, todo mundo de pé desde cedo, ainda de madrugada e com sorriso no rosto mesmo num calor sempre ascendente, e ao meio-dia já estava tudo feito.


De tarde, o pessoal ia mergulhar e às seis horas já estavam dormindo para começar tudo de novo às três da manhã, com o mesmo sorriso, a mesma vontade, o mesmo calor.


E apesar de saber que Recife é uma cidade violenta não senti nada, e fingi não saber que todos os dias éramos escoltados para o trabalho, respirando um ar estranho do tempo da coroa e um silêncio de uma cidade com muita história sem ninguém para contar.


Quando penso na história do Brasil, lembro que a tal “descoberta” do nosso país não foi ao acaso, espanhóis e portugueses já sabiam da existência de um continente aqui, o Tratado de Tordesilhas já dividia as terras antes mesmo deles chegarem e quando vieram encontraram um povo nativo sem travar grandes batalhas épicas registradas; não houve uma guerra monumental entre indígenas e colonizadores, diferente dos Estados Unidos onde os nativos lutaram intensamente contra os colonizadores por anos e décadas, aqui a resistência foi fragmentada.


Além de alguns episódios locais em alguns estados também não tivemos uma grande rebelião de escravos que garantisse a sua liberdade e não tivemos uma Guerra Civil dividindo o país em dois, e mesmo com alguns episódios separatistas regionais em algum momento tudo voltava a ser apenas Brasil.


Na minha percepção a abundância de recursos aqui fez com que não fosse necessário lutar por sobrevivência, nunca faltou o que comer ou beber, e as tribos indígenas podiam se dividir e se afastar sem entrar em grandes conflitos mesmo entre si.


Nunca houve uma grande guerra entre diferentes etnias, como uma tribo Yanomami atacando o povo Tupi-Guarani por exemplo.


Nosso histórico é de conflitos pequenos, mas sem aquele grande momento decisivo de transformação, e isto reflete em como o país funciona nos dias de hoje.


Vivemos em uma eterna passivo-agressividade em constantes e incessantes briguinhas de bairro, política, futebol e internet, mas sem resolver nada de forma definitiva.


Escândalos surgem diariamente em vez de se exigirmos justiça transformamos em piadas, rimas, frases de efeito e criamos memes, e em dois dias esquecemos pois somos atropelados constantemente com desinformação e notícias ruins e nada chega a um ponto de solução, seja positiva ou negativa, não conseguimos nos permitir rupturas e carregamos nos ombros pilhas de pequenos rancores acumulados das nossas relações profissionais, pessoais e familiares.


Quando estamos felizes sorrimos, abraçamos, beijamos; mas ao menor sinal de frustração atacamos, humilhamos, linchamos, usamos a nossa garra mais forte para agredir e machucar frontalmente e diretamente e então saímos pela lateral nos desculpando indiretamente por qualquer coisa, nos agarramos e nos penduramos em qualquer esperança, qualquer político, qualquer ídolo, ator, jogador, cantor, qualquer fim de semana estendido, qualquer festa religiosa, e no segundo seguinte saímos de lado frustrados, disfarçamos, e nos enterramos na areia ou somos puxados novamente para o fundo do balde.



Uma sensação constante e repetitiva de acordar de manhã e bater o mindinho no pé da cama todos os dias e passar o dia todo mal-humorado.


De manhã o mindinho batido te irrita, de tarde ele é uma má lembrança da manhã, de noite você não lembra mais que bateu o mindinho, mas o mau humor continua e você vai dormir assim e na manhã seguinte bate o mindinho de novo.


E olha o quanto tudo pode ser mais irritante, uma língua formal que parece ratificar todo o meu raciocínio, mal-humorado é com L mas mau humor é com U.


É o que penso quando passo na frente deste prédio que começou a ser construído em 2010 e ainda está lá parado e apodrecendo, uma entre milhares de obras por aí erguidas e então embargadas, depois interditadas e disputadas e então contestadas até não servirem de mais nada e serem (com sorte) demolidas.



Geralmente nem isto pois os processos se acumulam e apodrecem igualmente em pilhas de outros processos e enquanto péssimos diretores, administradores e políticos jogam a culpa uns nos outros da própria ineficiência, é o nosso dinheiro que está sendo desperdiçado.


E enquanto brincam de War e Monopoly com o dinheiro público e então investigam e processam uns aos outros, a brincadeira é paga com o nosso dinheiro também.


Tudo isto me faz sentir pequeno, um sentimento constante de insuficiência, desânimo e alimentando uma espécie de niilismo depressivo.


O Brasil é um lugar onde a pobreza e a abundância coexistem de forma bizarra, há tanta comida desperdiçada que mesmo os mais pobres conseguem sobreviver, ainda que com a humilhação dos restos.


E temos, de longe, a melhor comida do mundo.


Os baianos dizem que a comida baiana é um abraço.

É verdade, apimentada, mas um abraço.


Os mineiros dizem que o coração e o estômago ocupam o mesmo lugar no corpo.

É verdade, a comida mineira é a prova real e farta da existência do amor.


Já em Recife as coisas são mais simples, o recifense está sempre pronto para espremer um limão.


Quem já trabalhou e precisou de alguma ajuda na vida conhece bem essa expressão, e em Recife vai limão em tudo, no salgado, no doce e no trabalho, e até no tubarão.


Ele mesmo, o tubarão-limão, o mais inteligente de todos; ele não se importa com você mas também não é bobo, ele te dá espaço mas fica de olho, ele deixa você curtir desde que você não atrapalhe a curtição dele.


Existem regras para mergulhar com tubarões em Recife, você não pode nadar em cima ou abaixo deles, mas se eles gostarem de você eles podem nadar acima ou abaixo de você.


Você não pode perseguir eles, mas eles podem se meter na sua frente e se deixarem ser seguidos por você.


E mais importante, você não pode tocar em um tubarão, mas ele pode gostar da sua presença e roçar em você.


São coisas da natureza para as quais basta dar razão.


E em Recife não falta cocada, coentro, limão e gente cheia de razão.


Clarice Lispector tinha razão.

Reginaldo Rossi tinha razão.


Naná Vasconcelos tinha razão.

Manuel Bandeira tinha razão.


Romero Britto não tinha razão.

E Chico Science definitivamente tinha razão.


O segundo sotaque mais lindo do Brasil*, a segunda bandeira mais bonita do Brasil**, naufrágios que perderam a razão e um monte de tubarão, e tubarão sempre tem razão.



Dizem que quando você volta para a Bahia depois de conhecer pela primeira vez ela está lá te esperando do mesmo jeito que estava quando você foi embora, a Bahia sempre espera você voltar.


Outros dizem que você não se despede da Bahia porque a Bahia vai embora junto com você, mas se a Bahia vai embora com você, Recife não te deixar ir.



Recife é como encontrar uma ex-namorada que ficou mais gostosa depois de você terminar com ela, ela olha para trás quando você está olhando a bunda dela indo embora, e sorri.


Ir para Recife me dá uma sensação de ter perdido algo, e este algo nunca me pertenceu ou de uma segunda chance sem saber qual foi a primeira, Recife me fez perceber como eu odeio o Brasil porque eu me sinto um estrangeiro no meu próprio país.


Geograficamente inexistente no país onde o tempo não ensinou nenhuma lição, nosso país não foi forjado, a eterna sensação de não termos um passado para relembrar, um presente para viver, um futuro para apostar.


Um país sem antes ou depois que não preserva e não se renova, que constrói coisas belas mas não consegue manter em pé, um povo maravilhoso que parece odiar a si mesmo, que não sabe se está tentando ser salvo ou impedindo quem tenta de se salvar seguidas vezes puxando todos para dentro da panela de novo, apenas porque não sabemos que nos organizando podemos desorganizar e desorganizando podemos nos organizar.



Acabei de lembrar um termo e uma personagem muito interessantes e vou falar mais um pouco ainda sobre pertencimento.


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*Eu avisei que meu coração é mineiro.

**Não avisei?


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Cápsulas de fuzis vazios do tempo.


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Uma mulher de nome Sandra Regina Monteiro foi feita refém por outra mulher em um ponto de ônibus na Avenida Paulista no Centro de São Paulo, a polícia conseguiu conter a sequestradora com arma de choque e liberou Sandra sem ferimentos.


Dois dias depois Sandra foi entrevistada pela TV Globo e quando perguntaram como ela se sentiu durante o sequestro, ela respondeu:


- Teve uma hora que pensei: Eu, com tanta coisa para fazer, parada aqui'


Sandra é uma empreendedora de espírito.


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Por falar em reféns, um general holandês que faz parte da OTAN emitiu um comunicado alertando os empresários europeus se prepararem para um cenário de guerra, o governo alemão apresentou um projeto de preparação incluindo o sistema de metrôs como bunkers e o governo da Noruega está enviando panfletos aos seus cidadãos com orientações sobre estocar alimentos, água, artigos de primeiros socorros e como lidar com o frio sem energia elétrica.


China e Rússia estão fazendo exercícios militares aéreos no Mar do Japão, próximos da fronteira da Coreia do Sul.


Eu até iria te sugerir pegar a pipoca e assistir de longe mas as consequências logo chegarão até nós e se história e geopolítica são fascinantes, fazer parte nem sempre.


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No Brasil o dólar passou de seis reais, a maior alta da história desde a criação do Plano Real, mais de 30 anos atrás.


Aliás outra expressão vintage/cafona/cringe do final dos anos 80 era falar "a coisa ficou russa" quando tudo estava dando errado então eu não só sou da geração autorizada a dizer que no meu tempo era melhor como falar agora que a coisa ficou russa e continuar com a razão.


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O dólar está seis, a gasolina está seis, no país onde todos só se importam com o sexto dia da semana.


6 6 6.


Não pode ser coincidência, eu fui no show do Iron Maiden semana passada, o último da tour e o último com o baterista Nicko McBrain, o número da besta está em todos os lugares.


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